Um dia alguém escreveu…

“ A caridade não é apenas um gesto, mas sim um sentimento”

No próximo dia 19 de Outubro, o nosso projecto de apoio aos Sem Abrigo comemora um ano de vida, com muitas gargalhadas e lágrimas, fortalecendo-se com histórias e experiências, que os guerreiros do Exército de Oxalá adquirem e transmitem todas as semanas. Tudo se iniciou com a vontade e necessidade de fazer mais pelo próximo e, a procura do crescimento interior era uma constante, colocando em prática os fundamentos umbandistas, pelos quais nos regemos. Rapidamente ganhamos asas para voar até às ruas do Porto, sob a nossa responsabilidade e organização. Nas primeiras rondas levamos 80 kits e sopas, cumprindo 16 pontos (paragens) e, passado um mês aumentamos para 100. Neste momento, entregamos duas centenas e terminamos na Sé, que fica a meio do trajecto pré definido. As rondas do Exército não começam à quinta-feira. No início de cada semana entramos em contacto com as entidades participativas, para confirmar as ofertas. Um dia antes, durante a tarde, os voluntários vão recolher os donativos, separá-los e preparar os legumes. No dia de sair para a rua, a partir das 17h, começamos a confecção da sopa, a divisão de alimentos para os kits (iogurtes, água, pão, fruta e doces), a distribuição de roupa por sexo e carregamos os veículos. Às 21h, mais que preparados os voluntários saem da cidade da Maia em direcção ao primeiro ponto: Areosa. Neste local, encontramos a paz, a força e a alegria para levarmos o nosso objectivo em frente. É uma zona crítica da cidade invicta, movimentada e envolvida pelos mais diversos problemas sociais. Apesar disso, encontramos o Sr. Mário Moreno, de 45 anos sempre alegre na sua residência. Diz ele que o túnel da Areosa é o seu “apartamento” e que tem cameras ocultas para nos filmar. Ele que nos dá motivação para a noite, com as suas canções e fados, em que todos participamos. Mas uma certa noite, o Mário leu-nos uma passagem da Bíblia, mesmo não fazendo sentido as suas palavras, porque deturpava o que estava escrito e inventava frases, deu o que eventualmente precisaríamos naquela noite.

Mário Moreno

O mais importante foi o que nos tentou passar: PAZ e FORÇA para continuar, tendo ele consciência que existem muitos como ele à espera de alimentos, incentivou-nos a prosseguir a caminhada. Sem dúvida que é uma lição de vida. Com todos os problemas e tristezas de um Sem Abrigo, recebe-nos sempre daquela maneira tão caricata e tão própria… MÁRIO: OBRIGADO!

Mário com Mãe Elsa

Já no Dragão, segundo ponto, entregamos cerca de 30, onde algumas pessoas são fiéis desde o primeiro dia. O carro onde vai a roupa também tem grande fluxo de pessoas, que nos pedem o que não temos na altura, de uma semana para a outra. Em seguida, Lima 5. Onde a D. Fátima coordena a fila, de maneira a que todos sejam satisfeitos e lá de vez em quando canta as músicas do Emanuel, Quim Barreiros, Tony Carreira entre outros, acompanhada pelo seu rádio a pilhas. A dependência do álcool transforma as pessoas, vidas, mundos, desgasta, envelhece, mata. É um refúgio mais económico, mesmo que por horas, para aqueles que não têm dinheiro para os químicos. Deparamo-nos com esta situação em Júlio Dinis, em que muitos são imigrantes dos países de Leste que dormem no jardim da Rotunda da Boavista ou nas portas das lojas. Um local de arrepiar, é no Campo Alegre , próximo ao Bairro do Aleixo. Homens deixam-se levar pelas pernas já massacradas pelas picadas, em busca de algum alimento e roupa, sem darem oportunidade a qualquer manifestação nossa. Por vezes chegamos em alturas impróprias para eles e, vêm ter connosco com as agulhas ainda espetadas no pescoço ou braço, ou então esvaiados em sangue. Não há um sorriso nem um aperto de mão, apenas a degradação de seres humanos, ainda jovens e com um futuro que podia ser o que eles quisessem. A Bruna é uma menina com um sorriso e beleza únicos que, habitualmente estava num cruzamento numa cadeira de rodas a pedir. Dizíamos para nós, que era a nossa menina dos “danoninhos” Saiu já a alguns meses das ruas. Segundo sabemos, está em Vila do Conde num Centro de Recuperação. Estamos a torcer para que ela se recupere e consiga fazer dos sonhos dela uma realidade. Na mesma rua, mais acima (em frente à Junta de Freguesia de Massarelos), encontramos uma meia dúzia de jovens toxicodependentes que estacionam os automóveis que por ali param. Um deles, habitualmente está nos semáforos, tem apenas uma perna e utiliza a bicicleta como meio de transporte. O curioso é que ele, o João, consegue ultrapassar os nossos carros com a sua velocidade. A Guida, é a nova residente de Matosinhos. Soubemos a cerca de duas semanas que está num programa de desintoxicação, afastou-se do Porto e só aparece quando precisa. Ela disse-nos que se sentia bem, mas sentia a falta de uma televisão porque se sentia muito sozinha. Na verdade vimos outra Guida. Começamos a chegar ao jardim do Carregal e vemos muitos já em fila… outros a correr… uma mistura de expressões, atitudes e estados de espírito. Chegam a ser mais de 60 os nossos amigos que nos cumprimentam com um aperto de mão ou um beijo. De vez em quando a D. Branca contempla-nos com um fado e, sempre orgulhosa de aparecer na televisão, quando as estações decidem fazer reportagens. A Inês corre atrás de nós para dar um beijo, o Sr. António pede-nos roupa desportiva e muitos outros com os quais já temos uma relação mais próxima, fazem a nossa noite ser especial, onde nos esquecemos dos problemas pessoais, deixamos para trás um dia de trabalho e só pensamos em tirar partido do que nos dão. Fazemos uma breve paragem no Hospital Santo António. Nos bancos da sala de espera encontram-se dois homens idosos, com o corpo desgastado por uma grande parte das suas vidas ser na rua e, mesmo que estejam a dormir deixamos sempre a sopa e o kit. Até à bem pouco tempo, neste local, reuniam-se muitos Sem Abrigo. Uma vez que, aconteceram incidentes entre eles, o hospital tenta afastá-los e não fazer de um espaço enfermo de doenças, um de lazer e de abrigo. A Sé… ao subirmos a rua, olhamos para o ilustre monumento iluminado e preservado, bonito de se ver e visitar. Uma zona que deveria ser de paz e atraente, em contrapartida, o cartão de visita é a droga. De adolescentes a pessoas de meia idade, homens e mulheres, 40 no seu total, vêm ao nosso encontro com os seus corpos franzinos, frágeis, com cicatrizes, encardidos do fumo… mãos inchadas, dedos pretos… ressacados… Sorrisos? Nenhum, a não ser à chegada e à partida que nos dizem “Boa Noite”. E, se numa noite noite de longe a longe vemos um sorriso, sentimos um pouco de conforto, é de um deles que ressaca e que a muito custo consegue ter força para que a sua expressão mude. O olhar é triste, a escuridão invadiu a alma, o corpo, nada se ilumina naquele ser. E, por muito que a rua esteja iluminada, essa luz não é suficiente para que, os caminhos dos que ali encontramos levem outro rumo. Aí resta-nos retribuir a mesma expressão, transmitindo toda a nossa coragem e força e, quem sabe se não recebem a nossa mensagem de Esperança e a nossa Luz Interior. De algum tempo a esta parte, temos ficado por aqui, não temos avançado mais, devido ao grande número de pessoas que temos entregue os donativos. Não esquecemos do que vivemos até agora. Um exemplo disso, é a Vivenda Silva, nome gentilmente dado pela nossa Dina, na Rua Alexandre Herculano. A vivenda fechou as portas depois do Natal de 2006 e perdemos o rasto dos seus habitantes. A Câmara Municipal do Porto cimentou a entrada do edifício onde dormiam os nossos amigos, que já lá habitavam a alguns anos. Cerca de seis pessoas, umas a dormir outras acordadas, não dispensavam de ter como seu ou sua companheiro(a) um pacote de vinho tinto. Diziam eles que era o “Bioxene”. Desde o senhor que apregoava os números da lotaria, o Sr. Armando, o Jorge, um jovem de vinte e poucos anos e a Dina, não podíamos ser recebidos melhor do que com aquela boa disposição que os caracterizava. Rimos muito, brincamos e ainda lembramos com saudades. No entanto, passados alguns meses, encontramos o Jorge na Sé. Aparece, deixa de aparecer, não o temos como certo. Uma noite de Agosto que não nos vai sair da memória, no Carregal, foi quando a Dina apareceu. Ficamos felizes por vê-la. Esteve em tratamento, devido ao álcool, e com um melhor aspecto, o sorriso e o carinho dela preencheram os nossos corações. A Batalha, a Rua 31 de Janeiro, Santa Catarina, Gonçalo Cristovão e Trindade, fazem parte da nossa rota e são mais 30 pessoas. Com alguma tristeza não conseguimos satisfazer todos. Em breve, iremos aumentar concerteza e cumprir todos os pontos. Lembramos e voltamos a lembrar, a D. Otília. Uma senhora de 65 anos, que está sempre sentada à porta de um estabelecimento nocturno, em Gonçalo Cristovão. Figura marcada por uma vida pouco fácil, vive num quarto que é pago todos os dias. Está durante o dia numa estrada que liga ao Porto, diz ela que é o seu “escritório”, vive da prostituição. Faz-nos pensar, como que uma mulher da idade dela está envolvida nesta situação. Mas à parte disso, os “bonecos e bonecas”, os nossos voluntários, da D. Otília brincam muito com ela e aprendem termos portugueses jamais ouvidos ou imaginados. Quer sempre uma roupa bonita para ir “trabalhar”, uma carteira e roupa interior, visto ser muito asseada. O que é certo, é que quando passamos no local de trabalho dela, vemos a roupa estendida numa corda a secar. Somos muitas vezes abordados durante o nosso percurso, por meros curiosos. Ou pelo nome do nosso projecto que consta nos carros, ou pelo gesto em si. Perguntam-nos como podem participar, quem somos, as mais diversas questões são colocadas. Um feed-back notório e pela seriedade do projecto, foi um homem, que se dirigiu a nós uma certa noite no Carregal, com toda a sua curiosidade. Explicamos a nossa filosofia, percurso e crença, mesmo ele sendo católico praticante, dirige-se ao TUPOMI, para entregar donativos para as rondas todos os sábados e acaba por ficar a ver o nosso ritual. Também nesta mesma noite, fomos abordados por um grupo de homens de etnia cigana que assistiram ao nosso trabalho desde o início ao fim. E, no final ofereceram uma quantidade considerável de peças de vestuário para levarmos na carrinha da roupa. Só podemos agradecer gestos como este.

Agradecemos a ajuda, o carinho com que as empresas nos recebem, nomeadamente:

Longa Vida; Lusoformas; Padaria Formosa; Diogo Lopes Frias-Frutas; B.A. Bares Automáticos (Sr. Sérgio); Póvoa Bolos; Doce Mel Pão Quente (D. Beatriz); Rolbarão (armazém do Exército e disposição do veículo) e Nuno Rangel Unipessoal Lda (disposição do veículo).

Não é demais salientar que, recebemos legumes, roupas e outros alimentos necessários, de pessoas voltadas a ajudar, sensibilizadas para a caridade. Nada disto poderíamos proporcionar aos nossos Sem Abrigo sem o apoio de todos que estão envolvidos. O NOSSO MUITO OBRIGADO A TODOS.

Às vezes paramos na rua, numa reunião de trabalho, olhamos à nossa volta, observamos comportamentos e perguntamos para nós próprios se fazem ideia das necessidades dos outros; se sabem que existem pessoas com fome, sem casa, a passar frio e à chuva… E… fechamos os olhos torcendo para que um dia as mentalidades mudem, que a caridade seja voluntária e não imposta.